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Início » Possibilidade de redução de multas previstas nos editais de licitação
É cediço que os editais de licitação devem prever os percentuais de multa a serem aplicados em caso de inadimplemento parcial ou total da obrigação contratada. Essa regra vale tanto para as licitações promovidas pelas Estatais (Lei 13.303/16), como para aquelas promovidas pelos demais entes da Administração Pública, reguladas integral ou subsidiariamente pela Lei Geral de Licitações (Lei 8.666/93).
Ocorre que, durante a execução contratual, não raro se depara com situações onde o percentual de multa previsto no edital torna-se excessivo e desproporcional frente a infração cometida no caso concreto, tornando-se necessária a redução deste percentual, pela observância dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.
A questão deveria ser assim, de fácil compreensão e resolução. Contudo, no dia-a-dia contratual, observa-se extrema dificuldade dos agentes públicos em conjugar o princípio da vinculação ao instrumento convocatório, com os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, todos de ordem Constitucional, e, portanto, de igual relevância.
A maior dificuldade reside em reconhecer que o percentual de multa previsto nos editais de licitação é estabelecido de maneira altamente genérica, isto é, sem levar em conta as peculiaridades de cada caso concreto, aliado ao fato de que nenhum licitante impugna os termos do edital quando este prevê, por exemplo, multas na ordem de 30% ou 20% do valor total contratado, percentuais estes que, a depender do objeto licitado, consideram-se por si só altamente excessivos em comparação com os percentuais de lucro dimensionados nas propostas.
Evidente que a multa tem que exercer a finalidade de inibir a prática de novas infrações, e, no âmbito dos certames licitatórios, proteger o interesse público de empresas que apresentam propostas sem ter efetivas condições de cumprir com o avençado.
Não obstante, importante lembrar que a multa pode estar acompanhada da rescisão contratual, e ainda, ser cumulada com outras espécies de sanções, como por exemplo, a suspensão do direito de licitar, o que exige maior atenção na tarefa da aplicação do percentual de multa, previsto nos editais de licitação, já que a atuação disciplinar pode resultar um conjunto altamente severo diante da infração contratual praticada.
Sem contar também, que, a tarefa de aplicação da multa ou de qualquer penalidade administrativa, só pode ocorrer em casos de efetiva culpabilidade da empresa contratada, isto é, não basta a ocorrência de um evento indesejado, como por exemplo, o atraso puro e simples na entrega ou no cumprimento da obrigação contratual. É necessário que este evento indesejado tenha sido provocado por um fato para o qual a contratada tenha efetivamente contribuído, por ação ou omissão culposa.
Sem a conjugação desses postulados interpretativos a aplicação de multas pode se tornar um ato flagrantemente ilegal e de extrema injustiça contratual, devendo, mesmo em casos de culpabilidade, ser avaliada a possibilidade de redução do percentual previsto nos editais de licitação, quando este não representar medida que guarde relação de proporção e razoabilidade diante da infração cometida, ou mesmo diante das consequências que o inadimplemento efetivamente causou ao órgão contratante, na maioria das vezes, apenas parcial e temporário.
Sobre a matéria o Poder Judiciário já se pronunciou entendendo ser ilegal a aplicação de percentual de multa que se mostra exorbitante e provoca o enriquecimento ilícito da Administração Pública. Veja-se:
“[…] Percentual de 30% que se mostra exorbitante e importa em locupletamento ilícito da Administração. Possibilidade de aplicação supletiva das normas de direito privado aos contratos administrativos (art. 54, da Lei de Licitações). Aplicação do princípio da razoabilidade. Precedentes. Sentença de improcedência reformada. Recurso parcialmente provido.” (TJSP, AC 1005314-34.2015.8.26.0114, Rel. Des. HELOÍSA MARTINS MIMESSI, 5ª Câmara de Direito Público, j. 30.5.2017). Destacado.
“CONTRATO ADMINISTRATIVO. MULTA DE MORA. EXCESSIVIDADE. REDUÇÃO PELO JUIZ. CABIMENTO. 1. É lícito ao juiz reduzir a multa de mora imposta pelo retardo no adimplemento de contrato administrativo, se verificar sua excessividade. O princípio da proporcionalidade deve ser observado sempre, impedindo que o direito se transforme em instrumento da injustiça. 2. Correta a sentença ao reduzir a 10% o valor da multa, aplicando, por analogia, o art. 52, § 1º, do Código do Consumidor e o art. 924 do Código Civil. 3. Hipótese em que, além do mais, a imposição da multa não foi precedida do devido processo legal, determinado pelos arts. 86, § 2º, da Lei 8.666/93 e 5º, LIV, da Constituição. 4 Apelo desprovido.” (AC – APELAÇÃO CIVEL 97.04.52237-1, ANTONIO ALBINO RAMOS DE OLIVEIRA, TRF4 – QUARTA TURMA, DJ 13/09/2000 PÁGINA: 257.) Destacado.
“CONTRATO ADMINISTRATIVO. MULTA. MORA NA PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS. REDUÇÃO. INOCORRÊNCIA DE INVASÃO DE COMPETÊNCIA ADMINISTRATIVA PELO JUDICIÁRIO. INTERPRETAÇÃO FINALÍSTICA DA LEI. APLICAÇÃO SUPLETIVA DA LEGISLAÇÃO CIVIL. PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE.(…) 1. Na hermenêutica jurídica, o aplicador do direito deve se ater ao seu aspecto finalístico para saber o verdadeiro sentido e alcance da norma. 2. Os Atos Administrativos devem atender à sua finalidade, o que importa no dever de o Poder Judiciário estar sempre atento aos excessos da Administração, o que não implica em invasão de sua esfera de competência. 3. O art. 86, da Lei nº 8.666/93, impõe multa administrativa pela mora no adimplemento do serviço contratado por meio de certame licitatório, o que não autoriza sua fixação em percentual exorbitante que importe em locupletamento ilícito dos órgãos públicos. 4. Possibilidade de aplicação supletiva das normas de direito privado aos contratos administrativos (art. 54, da Lei de Licitações). 5. Princípio da Razoabilidade. 6. Recurso improvido.” (REsp 330.677/RS, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 02/10/2001, DJ 04/02/2002, p. 306). Destacado.
Como não poderia ser diferente, o entendimento do Poder Judiciário ampara-se na própria legislação federal, a partir da conjugação do artigo 54, caput, da Lei 8.666/93 com o artigo 413 do Código Civil:
Art. 54. Os contratos administrativos de que trata esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, aplicando-se-lhes, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado. Destacado.
Código Civil:
Art. 413. A penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio. Destacado.
Portanto, não pode a Administração Pública, invocando o princípio da vinculação ao instrumento convocatório, aplicar de maneira automática o percentual previsto nos editais de licitação, sem avaliar as peculiaridades do caso concreto, a ocorrência de danos efetivos em razão do inadimplemento, o comportamento da empresa para minimizar os efeitos do descumprimento, inclusive o quanto ela cooperou com o órgão contratante, oferecendo informações capazes de gerenciar a crise ou instabilidade causada pela situação indesejada.
Por óbvio que, se o legislador optou por não estipular índices fixos para a pena de multa, esperava que o agente público, ao aplicá-las, utilizasse da devida proporcionalidade e razoabilidade.
Flávia de Araújo Bispo
OAB/SC 19.110-A
OAB/PR 25.547
Farah Gomes e Advogados
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